terça-feira, 30 de agosto de 2011

Criador sem Fronteiras

por SÉRGIO MAGGIO



O teatrólogo Fernando Villar está em estado de graça. Acabou de apresentar na cidade Ivan e os cachorros, na programação do Cena Contemporânea. A montagem é reflexo do espírito sem fronteiras. O diretor, que até hoje é lembrado por espectadores que viram espetáculos antológicos, como Vidas erradas, na década de 1980, transformou-se num conceituado pesquisador teatral, um estudioso da performance e uma referência internacional no estudo de novas teatralidades. 

                                                                                                        Foto: Breno Fortes


Suas peças dos anos 1980 são como rocks da Legião Urbana e do Capital Inicial, que não se apagam com o tempo. Fazer teatro naquela época era uma utopia? 
O ator Aloisio Batata dizia que éramos “insistencialistas”. Eram utopias realizadas na criação artística superdisposta, a fim de pelo menos conversar sobre outras coisas que achávamos pertinente, da forma outra que conseguíssemos encontrar na nossa busca. E o fato de termos a mesma idade da jovem capital do país era um ingrediente especial. Também ajudou a deterioração da ditadura desde o começo da década, a abertura, o desbunde... Era um outro contexto, de mais liberdade comparado com a brutalidade e a censura das décadas anteriores. É complexo comparar épocas e contextos, mas hoje talvez fazer teatro seja mais utopia ainda, não sei. Benzam os deuses e deusas, continuamos com vários e várias “insistencialistas”. 

Quem era o Fernando Villar dos anos 1980 e quem é o Fernando Villar de 2011? 
São décadas que se passaram, quilos que ficaram e cabelos que não voltaram (risos), normal, mas a inquietude permanece, e a ambição de criar obras contundentes, de explorar limites e fronteiras. Eu adoro aquela frase da Sylvia Plath, “de alguma maneira nós temos que manter e segurar a doidura dos 17 anos.” Com 50, é outro papo, mas a batalha continua. Nos anos 1980, eu não trabalhava na UnB, dirigia e tinha mais visibilidade aqui. Agora, dirijo mais e tenho mais visibilidade fora de Brasília. Aqui agora, parece que eu sou mais relacionado à UnB (o que me encanta e tento honrar). For a, eu sou mais ligado ao teatro performance (o que também me encanta e também tento honrar). Nos 1980, só dirigia e encenava peças minhas, agora estou adorando enfrentar os desafios de tentar materializar criações de outras pessoas, como Mariano Pensotti, Caryl Churchill ou do Grupo Violes e, atualmente, Hattie Naylor, autora inglesa de Ivan e os cachorros. A tradução também é uma aventura mais recente. 

A universidade te roubou do mercado?
Eu me roubei do mercado, encantado, gracias (risos). A UnB me salvou do mercado, sem ignorá-lo ou desmerece-lo, já que também preparamos pessoas para o mercado, no caso de Brasília, um mercado crescente, mas incipiente, problemático, complexo. A UnB me permite estar no mercado, mas não ser dele ou muito menos dependente dele e isso é um prazer inenarrável (risos). Mercado nunca me encantou muito, o público ou o próximo sim. 

Hoje você se sente mais um pesquisador teatral ou um diretor? 
Eu já pesquisava antes da UnB, mas uma pesquisa muito pessoal e fechada nas minhas obras, não publicada regularmente como depois do doutorado (1996-2000). Tive uma relação meio conturbada entre os dois pólos por um tempo, por ignorância minha. Hoje, não consigo ver um isolamento entre as duas posições. 

Como você percebe a recepção do público a essa sua nova produção?
A recepção à produção de artigos e palestras tem me feito viajar muito e trocar muito com artistas professores de outras universidades federais, festivais, congressos e grupos e companhias do Brasil inteiro. Quanto à nova produção artística aqui em Brasília, desde 2007, tenho trabalhado com formandos, formados e atuais colegas no Chia, Liiaa! Depois do Vidas erradas e do Tucan, posso falar que é o meu novo grupo. O Chia, Liiaa! é o braço artístico do Laboratório Interdisciplinar de Investigação e Ação Artística que coordeno na UnB. O grupo só monta peças inéditas no Brasil e que tenham propostas de discussão de temas contemporâneos. 

E Ivan e os cachorros? É uma produção brasiliense ou paulista? 
É uma produção multinacional com direção brasiliense. A montagem brasileira de Ivan é um trabalho feito com muito afeto e conseguimos um dream team especial que está envolvido na encenação. A autora, a londrina Hattie Naylor, tinha acabado de assistir à estreia de Nova York e falou que só poderia ver uma sessão da nossa montagem. Acabou assistindo a três. Emocionou-se muito em cada uma e agradeceu, aos prantos. Ela está tentando levar nossa montagem para Londres e Edimburgo em 2012. 

Você é coautor de um livro que conta histórias do teatro brasilense. Como você classificaria esse teatro brasiliense que chega ao fim da primeira década do século 21? 
Vejo um quadro inspirante na quantidade de novos grupos e outras propostas de jovens criadores daqui, formados por artistas professores atuantes, dentro e fora da universidade. 

Você acha que as universidades, Dulcina e UnB, têm feito o papel da experimentação ou estão mais preocupadas em formar alunos para o mercado? 
Posso falar com conhecimento de causa da Universidade de Brasília e das outras federais que tenho circulado, mas acho que o Dulcina também busca um equilíbrio entre experimentação, pesquisa e preparação para o mercado, sem limitá-lo nem sendo subserviente a ele, mas buscando mostrar outras aplicabilidades da habilidade cênica, e buscando privilegiar a invenção sem perder a reflexão ou fundamentos éticos. 

Há uma aproximação estética sua com o teatro latino. Como isso tem reverberado em sua obra? 
Estudantes e colegas da arte e da UnB vêm me perguntar frequentemente sobre Londres e Barcelona e eu recomendo olharem com mais carinho — e mais perto — para Buenos Aires. Nuestros hermanos portenhos têm exportado um teatro ímpar, com interpretação visceral e precisa, propostas radicais de dramaturgia, direções instigantes e muitos questionamentos de certezas teatrais, performáticas ou cênicas. Daniel Veronese, Guillermo Cacacce, Mariano Pensotti, Periférico de Objectos, Emilio Wehbi, são tantos criadores fantásticos lá. Estou tentando os direitos de uma nova peça do Mariano, Sucio (sujo) para fazer com o Chia, Liiaa! Laura, que fizemos de 2007 a 2009, é dele e tivemos um retorno fantástico das pessoas que assistiram. O encantamento com a dramaturgia dele em Laura foi quase uma unanimidade. 

O que o teatro tem feito de bom por Brasília sede do poder? 
O teatro e a arte de Brasília cortam a imagem única de Brasília como sede de poder. Mostra que podemos separar a cidade e sua produção artística dos desmandos do poder que acontecem aqui. 

Você que viaja tanto pelo mundo. O teatro de Brasília ainda é invisível? 
De forma alguma. No Itaú Rumos Teatro, que teve centenas de inscrições de grupos e companhias de todo o Brasil, a Região Centro Oeste foi a região que apresentou menos projetos, mas Brasília foi a cidade que aprovou mais projetos, mais do que Rio, São Paulo ou Belo Horizonte. O Udigrudi é um dos grupos brasileiros que mais transitam internacionalmente. Hugo Rodas, os Guimarães, Ribondi, Teatro do Concreto e outros estão estreando em diferentes cidades do Brasil. Eu e Hugo temos dirigido fora daqui há tempos. Dois anos depois da estreia na UnB, assisti a Adubo ou a sutil arte de escoar pelo ralo em São Paulo e vi uma plateia lotada no Centro Cultural Vergueiro aplaudindo emocionada, fiquei no maior orgulho (risos). 

Os grupos da cidade têm reclamado da falta de público nas peças. Na sua opinião, o que falta para o brasiliense ficar diante do seu teatro? 
O desafio é cada vez mais instigante. Nunca reclamei e nem posso reclamar do público em minhas peças. Mas acredito que, além de políticas públicas de cultura, mais espaço na mídia já seria bastante positivo. 

Recentemente, Antonio Abujamra esteve na cidade e disse que não se ouve falar de teatro político feito em Brasília. Será que somos o paraíso das comédias? 
Não ouço falar muito de teatro político no Brasil, e também não saberia dizer quando que o teatro deixa de ser político. A comédia ou o humor não exclui o político, muito pelo contrário. Um teatro alienado ou pretensamente apolítico já estaria evidenciando uma posição política, né? Eu gosto muito de uma definição do teórico alemão Hans-Thyes Lehmann que fala que o teatro político seria o teatro que consegue mudar a forma e as fórmulas de percepção das questões políticas, e influi na forma de percepção. 

Você tem vistos as atuais produções da cidade? O que te move a ir ao teatro? 
Infelizmente, o monte de viagens na loucura de tentar equilibrar as carreiras artística e acadêmica me impedem de ver muita coisa que eu gostaria de ver. As temporadas curtas daqui não ajudam muito. Mas vi recentemente o trabalho do SAI (Setor de Áreas Isoladas), o Cabaré das Donzelas Inocentes, Danaides do Basirah, e Bagatelas, do Cena, quatro poéticas bem diferentes, mas igualmente interessantes. E tem muita gente nova aí que ainda vai dar o que vai falar, aguardemos. Essa potência que me move a ir ao teatro, assim como a invenção, a alternativa, o outro pensamento, a outra ação que te leva a repensar coisas, me move a vontade de transformação, o jogo, o inexplicável... 

Você é um estudioso da performance, do teatro híbrido, como La Fura dels Baus. Tem algo parecido no Brasil que te provoca frisson? 
Alguns trabalhos do Teatro da Vertigem flertam com a poética do La Fura, mas acrescentam seus próprios toques, seja no hospital, na prisão ou no rio Tietê. Lá em São Paulo também, a Cia. dos Narradores acabou de estrear um trabalho que começa na sede do grupo lá no Bexiga e sai pro meio da rua, onde a peça se desenrola no meio do trânsito louco da 13 de Maio que não é interrompido, mas utilizado espetacularmente. Em Buenos Aires, você pode encontrar filhos e netos do La Fura, tipo o De La Guarda ou o Fuerza Bruta, muito interessantes, que reconhecem a filiação. 

Antigamente, os diretores da cidade tinham acesso aos palcos nobres, como Villa-Lobos. Por que se abriu um fosso entre o governo e os artistas? 
A Secretaria de Cultura tem sido dirigida por vários pára-quedas, como se diz no popular para pessoas que ou não têm nada a ver com a situação a que são chamados para decidir. No nosso caso, pessoas que não têm nada a ver Brasília, ou não tem nada a ver com arte, educação e cultura, ou mesmo ambos! Governos têm criado o fosso por esse desconhecimento da realidade local, ou mesmo afeto por ela, ou pela área da arte e da cultura. A falta de diálogo com a classe produtora local aumenta o fosso. 

Que nota você daria a atual política cultural da cidade? 
À feita pela classe artística, que se mantém íntegra e instigante contra todas as adversidades, nota 10 – com louvor, mérito e indicação para publicação (risos), para vários colegas da cidade. A feita pelo governo está em processo e em avaliação atenta. Não seria muito difícil contrastar com os vários governos que ignoraram totalmente, escancaradamente e desavergonhadamente a força da arte e da cultura na criação de uma cidade plural, includente e responsável com o próximo. Essa cidade foi criada para irradiar arte e cultura, está no plano original da nova capital, a única cidade do mundo criada e tombada no mesmo século, como diz meu irmão, o arquiteto e capoeirista Cláudio (Danadinho) Queiroz. Confundir com irradiar corrupção é uma deturpação nojenta. Mas a batalha continua, para todos nós que tenhamos a ambição de morar em uma Brasília nossa, não dos poderosos que tentam arrasá-la e trazê-la pra uma vala comum que não tem nada a ver com o que motivou ou deveria motivar uma capital.

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